Conto de infância: azeitonas
Era uma vez, há muitos anos atrás, um menino que era eu. E eu não sabia o que era azeitona. Não conhecia a palavra, nem a coisa. Em compensação sabia o que era goiaba (quem não sabe, não é mesmo?). Mas só eu sabia onde estavam as melhores, e para chegar lá eu tinha que subir no telhado da casa, o que era proibido. Também conhecia limão-china, que era proibido chupar. Também era proibido comer manga verde, e nem pensar em comer manga se, no mesmo dia, tivesse comido banana. Era morte certa. Nisso eu acreditava. Cheguei até a pensar que se de repente meus pais morressem, e eu ficasse sozinho no mundo, choraria bastante e depois comeria manga com banana. Enfim, minha infância pobre em cidade do interior, transcorreu com aquela pobreza normal e resignada, e não cheguei a ser uma criança órfã.
E as azeitonas? Ah, sim, ia me esquecendo. Mas antes tenho de lembrar do quintal onde eu brincava. Lembro-me de cada árvore, laranjeiras, mangueiras, uma goiabeira... O limoeiro ficava no quintal vizinho, casa da minha avó. Também me lembro, embora com imagens confusas, da miscelânea de plantas medicinais que minha mãe cultivava à frente da porta da cozinha, onde se destacava um pé de sabugueiro. Havia também tipi e arruda, dos quais tinha ódio. É que em uma determinada época do ano houve uma verdadeira invasão de pernilongos, coisa que gente do centro da cidade não pode imaginar. E então, para espantar tantos inimigos, minha mãe juntou folhas fedorentas dessas duas plantas, misturou com papel, colocou tudo numa latinha, pôs fogo, encheu a casa de fumaça e milhares de pernilongos fugiram (nem todos, é claro, ficaram algumas dezenas, e o cheiro insuportável). Quanto às plantas medicinais, quando a gente adoecia sempre havia uma planta curativa da qual se dizia “é um santo remédio”.
Mas nem só entre plantas a gente vivia. Havia também gato, cachorro, um papagaio, galinhas, um galo idiota que acordava bem cedo, só para cantar. Havia também alguns porcos, lembrança que me remete a dolorosas imagens: no dia em que se matava porco em casa a gente ia até a casa do vizinho pedir folhas de bananeira, uma porção seca e uma porção verde. As folhas secas serviam parar “sapecar” o porco, como se dizia, ou seja, para serem queimadas e com o fogo queimar os pelos do bicho depois de abatido. As folhas verdes eram usadas para forrar o chão na hora de cortar o porco em pedaços. A carne era repartida entre a família e com alguns vizinhos. A lembrança ruim que tenho, quase trauma, é dos guinchos do porco desde a hora em que era retirado do chiqueiro até o sangramento. Eu me recusava estar presente, ia para bem longe. Nem tão longe assim, é verdade, pois ainda escutava o que não queria. Pelo menos não via. Mas isso é outra história. Volto ao assunto principal antes que leitores e leitoras sensíveis me abandonem.
Volto às azeitonas. Mas antes tenho ainda que terminar a história dos porcos, mas só o lado sentimental e poético, não o dramático. Minha infância foi muito ociosa, sem jardim de infância, alfabetização só aos sete anos. Uma das poucas coisas úteis que eu fazia, era tirar água de um pequeno tambor e despejar no cocho de cimento que havia no chiqueiro, o que eu fazia pela fresta da cerca. O alimento dos porcos era milho e resto de comida. Resto de comida era coisa que quase não existia lá em casa, era proibido sobrar comida no prato, se tirava da panela tinha que comer. Mas meu pai tinha amizade com famílias ricas, e no final da tarde, quando ele voltava do trabalho, passava em diversas casas recolhendo restos de comida. O resultado da coleta, acondicionado em uma grande lata, ele vinha empurrando num carrinho que ele mesmo fez. Era um caixote no qual ele engenhosamente colocou um par de rodas e um par de braços de madeira para empurrar. Fiquei muito orgulhoso de meu pai quando ele fez isso, ele até deixou que eu entrasse no carrinho, e empurrou o carrinho comigo dentro. Como ia contando, à tardinha meu pai voltava para casa empurrando o carrinho e passava em algumas casas recolhendo aquilo que a gente lá em casa chamava simplesmente de “lavagem dos porcos”. Eu tinha curiosidade nessa “lavagem”, pois às vezes encontrava pedaços de brinquedo, enfeites de festa, espetinhos de plástico, coisas assim úteis para brincadeiras de criança. Foi numa dessas bisbilhotices que encontrei a coisa.
- Mamãe, que uva mais dura.
- Não é uva, é azeitona.
Devagar, fui levando a azeitona à boca, sempre olhando para minha mãe. Ela era muito severa com o cumprimento de suas ordens, e eu tinha que adivinhar as coisas só de olhar nos olhos dela. Como não senti reprovação, fui saboreando minha primeira azeitona. Minha mãe olhava para mim, mas parecia que estava conversando com os próprios pensamentos e foi logo cuidar da cozinha. Desde então fiquei sabendo que criança não podia chupar limão-china, nem comer manga verde, mas podia comer azeitonas.