Hoje lembrei-me de um livro que descreve as profundezas da alma e que tem as mais diversas possibilidades de significado. Podemos lê-lo para contextualizações históricas, exemplificação de teorias psicanalíticas, teses sobre dificuldades em traduções literárias, estudos na área de Comunicação, reflexões sobre os Poderes Legislativo/Executivo/Judiciário (dos tempos modernos), e debates sobre a Verdade, a Mentira, a Justiça, o Lúdico, o Sonho, o “Nonsense”.
Ao lê-lo, uns riem, outros sonham, outros têm saudade da infância. É possível, até, que haja um entendimento único e próprio para cada leitor. É uma obra de interesse de todos, em qualquer idade, mas deve ser lida com reservas pelos maiores de 18 anos (pode chocar as mentes mais enrijecidas). A seguir, alguns momentos muito interessantes da história:
— Quem se lembra dela, a Rainha que em seus surtos de fúria grita, referindo-se às pessoas das quais não gosta: “Cortem-lhe a cabeça!”
— Quem se lembra dos misteriosos alimentos que, em poucos segundos, fazem uma pessoa aumentar ou diminuir a própria estatura?
(Nas pesquisas de intenção de voto no Brasil, neste ano de 2022, ocorre algo semelhante. Dependendo dos bolos e cogumelos que come, o candidato pode até ultrapassar 100% das intenções de voto. Mas atenção, esta observação, que aqui está entre parênteses, é uma “fake news” que inventei agora. Não está no livro.)
(Já que acabei de escrever “fake news”, esclareço que ainda não encontrei tradução para isso, e nem sei bem o que é. Mas parece que é uma expressão mágica que dá grandes poderes a quem a usa. Já penso até em usá-la em todas as minhas crônicas, mesmo contrariando os puristas do nosso idioma).
— A QUADRILHA DA LAGOSTA (ou A Dança da Lagosta, segundo outras traduções) – Trata-se de uma dança: formam-se duas fileiras paralelas. São focas, tartarugas, salmões... cada um com uma lagosta como parceira. Deve-se andar dois passos para frente, fazer uma mesura diante da parceira, trocar de lagosta e voltar à mesma posição... a coreografia pode não ser bem essa, mas isso pouco importa. Nessa quadrilha, a música que a Falsa Tartaruga canta tem o seguinte refrão: “Vais ou não, tu vais ou não, tu vais entrar na dança?”
(Comentário deste cronista: A política é a arte da dança, e dança mais bonito quem dança com lagostas. E tu vais ou não, entrar na dança?)
— UMA CORRIDA ELEITORAL E O LONGO RABO DE UMA HISTÓRIA (ou A Corrida de um Comitê e uma Longa História, em outras traduções) – Alice e sua turma bizarra (Pato, Papagaio, Rato, pássaros de longa plumagem, criaturas diversas) acabam de sair do mar. Molhados, precisam se secar, e propõe-se uma corrida. As regras do jogo não importam muito, o importante é correr. Ao final da competição em que todos correm, inclusive Alice, todos ganham. Cabe a Alice o ônus de premiar. E gritam para Alice: Prêmios, prêmios! Atônita, lembra que tem uma caixa de confeitos no bolso, e os distribui, todos. O Rato observa que Alice também deve ser premiada. No bolso de Alice há um dedal. A bicharada se reúne e, após uma pausa solene, premia Alice com o dedal (que já era dela). Todos aplaudem.
(Mais uma “fake news” que acabo de inventar: Alice ficou com “aquela cara”, “aquela” de milhões de brasileiros após as eleições. Todos ganham, a democracia ganha, mas Alice distribui, antecipadamente, ricos confeitos para os organizadores e protagonistas da Corrida Eleitoral. A bicharada precisa, e até merece, mas... convenhamos, a gula é de bilhões de reais. A Alice brasileira é premiada apenas com o discurso de uma linha: “Rogamos-lhe que aceite este elegante dedal!”).
— E quem se lembra daquele julgamento clássico em um mundo onírico:
A Corte se reúne. O Valete é acusado de ter roubado tortas da Rainha (tortas que nem tinham sido roubadas e estavam na mesa do Tribunal).
O Rei, que também é Juiz, usa uma excelentíssima peruca de Juiz, e, em cima da peruca, a coroa de Rei.
Logo de início, o Rei, que parece ter problemas de raciocínio lógico, quer o veredicto do Júri, antes de ouvir as testemunhas. O Rei é corrigido desse engano, pelo Coelho, e o julgamento prossegue, surreal, desrespeitoso e com graves ameaças às testemunhas. E cruel punição aos porquinhos-da-índia, por se manifestarem de maneira imprópria, batendo palmas (são metidos em um saco e alguém senta em cima).
A parcialidade no julgamento é evidente. O Rei decide expulsar Alice do Tribunal e inventa um Artigo Quarenta e Dois, em seu Código, que determina a expulsão, do recinto, de todos que tenham mais de um quilômetro e meio de altura. O artigo é tão mal inventado que não se cumpre, mesmo com a certeza, da Rainha, de que Alice tem quase três quilômetros de altura.
São testemunhas: o Chapeleiro, a cozinheira da Duquesa e Alice.
O Júri: são doze criaturas (animais e pássaros) que, ignorando suas atribuições e a gravidade do momento, ficam distraídas jogando videogame no celular. Perdão leitores, não foi isso que o Autor escreveu. À falta de melhor tecnologia, na época, os jurados passam o tempo escrevendo ou desenhando coisas aleatórias, com giz, em suas lousas.
Final do julgamento: depois de uma insólita arguição de testemunhas chega ao tribunal algo que parece uma carta não assinada e sem destinatário. O texto enigmático é lido pelo Coelho, e isso desperta no Rei profundas reflexões hermenêuticas para solucionar o mistério das tortas que estão sobre a mesa. Só então o Rei dá palavra ao Júri, para o veredicto.
A Rainha protesta: Não, não! Primeiro o Rei, com a sentença, depois o Júri, com o veredicto.
Alice discorda: Onde já se viu a sentença antes do veredicto?
A Rainha ordena: Dobre sua língua!
Alice retruca: Não dobro, não!
A Rainha, enlouquecida, grita: Cortem-lhe a cabeça!
E Alice dá a resposta que põe fim à farsa do julgamento:
“Quem se importa com você?”
“Vocês não passam de um maço de cartas!”
“Naquele momento, todo o baralho voou pelos ares (...)”.
Não sei por quê, mas gosto muito do final do sonho de Alice. E todo o baralho voou pelos ares...
Observação: Esta crônica é uma divagação sobre o livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Tomei como base a tradução de Isabel De Lorenzo e Nelson Ascher, em sua 2ª. edição (Objetivo), ano 2000.