Carlos Drummond de Andrade em disco de vinil
Na segunda metade do século passado, faziam sucesso os LP’s (long-plays) e os compactos, os duplos e os simples, e as fitas cassetes. E para apreciar tudo isso, sem gastar fortunas com equipamentos sofisticados, comprei o “três em um”, que era aparelho mais simples, equipado com rádio, toca-discos e toca-fitas. Esse equipamento, de início tão desejado e apreciado, foi gradativamente ficando ocioso, até que, um dia, parou de funcionar e o conserto não valia a pena. Fato consumado, segui a onda das modernidades digitais. E muitos anos se passaram.
Recentemente comprei equipamento novo para os discos velhos e comecei a minha sessão de relembranças ouvindo a Antologia Poética de Carlos Drummond de Andrade, lançada em LP duplo, em 1978, com a voz do próprio autor. Uma hora de boa poesia. São 38 faixas que revelam as diversas fases da escritura drummondiana.
Drummond declama seus poemas como quem conta histórias, sem malabarismos vocais e com simplicidade perturbadora. Mas ele é muito preciso na melodia de cada frase, principalmente quando reforça a ironia, o leve sarcasmo, a reflexão melancólica ou o momento de infinita solidão.
Quando ouvi o disco pela primeira vez tive a reação precipitada de maldizer a gravadora por não ter providenciado a regravação de três faixas em que o Drummond pigarreia levemente. Hoje penso diferentemente e prefiro o Carlos Drummond humano, que usa a licença poética para tossir discretamente no meio do poema. Se essa antologia fosse gravada hoje, nos modernos estúdios, na certa haveria malucos perfeccionistas sugerindo o software de última geração para apagar o registro da humanidade do poeta.
Essa antologia privilegiou o Drummond de bom humor, irônico e até sarcástico, com três faixas.
Em “Falta um disco” o poeta afirma estar triste, tristinho, tristonho, pois é o único brasileiro vivo que nunca viu um disco voador.
Em “O homem, as viagens” zomba das conquistas espaciais e da pretensão humana em colonizar/humanizar muitos planetas e até o Sol. Termina lembrando que é necessário voltar à Terra e colonizar/humanizar o coração dos homens.
Em “Alta cirurgia” o cenário é de ficção científica. Cientistas fizeram cirurgias e implantes em dois cães, conseguindo com isso um cão com duas cabeças e outro com dois corações. Carlos Drummond explica divertidamente a utilidade das bizarras invenções.
O Drummond mais sério aparece em “O caso do vestido”. Drama familiar (triângulo amoroso) contado sob o ponto de vista feminino, com grande sensibilidade.
Em “A morte do leiteiro” o tema é a injustiça social. Abordagem feita com sofisticados recursos de literários. Não é meu desejo despertar polêmica, mas quero registrar meu desagrado com a visão socialista do Autor nesse poema, pois aponta genericamente os responsáveis pela miséria no país e rotula quem é bom e quem é mau, e afirma que o leiteiro leva “leite bom para gente ruim”. Essa generalização e rotulação simplista do mundo em classes sociais, bem ao gosto marxista me incomoda, e dela discordo. Mas reconheço o grande valor artesanal do poema, e sua grande capacidade de causar impacto emocional. Ainda lembrando a expressão “gente ruim” quero salientar que achei interessante a pronúncia que o autor/declamador deu à palavra ruim, pois usou a linguagem coloquial usada pelo leiteiro: ruim com a vogal u tônica.
Em três poemas Drummond aborda a própria essência da criação literária: “A procura da poesia”, “O lutador” e “Oficina irritada”. É a visão que o escritor tem para o processo criativo no qual se empenha.
Também estão nos discos “Quadrilha”, “Pedra no caminho” e “José”. Não podiam faltar, não é mesmo?
Em resumo, essa antologia é precioso registro histórico que o papel dos livros é incapaz de expressar.
E para não me alongar, termino com as impressões que tenho do último poema:
Em “Declaração de amor” o poeta nos joga numa pequena armadilha estilística. Desde o título até os primeiros versos o poema sugere tratar-se de declaração de amor à moda antiga. Segue-se a evocação de flores e mais flores, e (golpe de mestre), desnorteia o incauto ouvinte/leitor com o final sombrio em que nos aponta o segundo lado da nossa existência... Assim termina a última faixa do lado dois do segundo disco. E termina minha singela crônica de relembranças.
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PS: Recentemente descobri que a referida antologia pode ser encontrada livremente na internet. Sugiro pesquisar em VÍDEOS: CARLOS DRUMMOND POR ELE MESMO.